sábado, 5 de novembro de 2011

Velhote*

Os recentes cabelos brancos apenas ratificam minha condição. Tropeço no invisível, o olhar se perde na enorme distância entre a memória e a voz. Ajo como se já tivesse passado tanto tempo, um monte de coisas difíceis de achar no limbo-eu. Os raros rompantes juvenis são apenas lapsos de uma personalidade senil. Pouco se sabe sobre o que resta da impetuosidade da juventude, das máximas "a esperança é a última que morre" ou "enquanto há esperança há vida" quando a própria esperança agoniza. O tempo sobre os fracassos e as perdas é mesmo o melhor remédio? Não sei se Freud concorda com a afirmação. O pessimismo gesta na observância do comportamento humano e, a única forma de se chegar até sua verdadeira forma (e não cair no pseudo-intelectualismo), é viver além Kronos: No Kairós, o tempo subjetivo e infinito. Por estas e outras o tempo me prostra. Eis o veredicto: sou velho desde que nasci!

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Divagações

Referir-se a um objeto pelo seu nome é suprimir três quartas partes da fruição do poema, que consiste na felicidade de adivinhar pouco a pouco: sugeri-lo, eis o sonho. É o uso perfeito desse mistério que constitui o símbolo; evocar pouco a pouco um objeto e desprender-se dele um estado de alma, uma série de decifrações.
                                                             MALLARMÉ S., Divagações, 1897.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Passarinho do Peito Amarelo

Um passarinho do peito amarelo jazia morto na grama em frente de casa. Eu, a observar sua decomposição lenta, dia após dia, a tomar sol e chuva, o corpo se decompondo, se dividindo em pequenas partes. As borboletas a voar próximas e a pousar em seu peito amarelo enquanto formigas devoravam sua cabeça. Formigas-urubus! Não sei de que espécie ele era e pouco importa, decomporia como todos os que vivem. Morrera cruelmente pelas garras de um predador que não ficara muito preocupado em se alimentar do fruto de sua caçada, afinal minha gata come ração de marca sabor salmão. Não me lembro de já ter comido salmão na vida mas já experimentei ração de gato sabor salmão. Um dia me certifico se o salmão tem mesmo o gosto da ração de gato.

O amarelo do peito do passarinho após alguns dias estava opaco, um amarelo-morto. As asas entreabertas num voo terrestre, a evidência de uma última e desesperada tentativa de fuga. Porém, a únicas coisas que voavam por ali eram as moscas. Ah, algumas poucas penas eventualmente se desprendiam do seu pequeno corpo e, levadas pela brisa, dançavam  em movimentos imprevisíveis numa liberdade nunca antes experimentada. Que poético! Só que a verdadeira poesia estava nos insetos que continuavam lá, abrindo caminho por suas entranhas e fazendo de sua morte, vida. O milagre da vida! Aposto como o passarinho preferiria estar vivo a participar de qualquer milagre... 

O peito do passarinho, não mais amarelo depois de tanto tempo, expunha-se lacerado, como uma lição aos incautos. Não havia mais olhos e o bico estava todo aberto em súplica. Era o pedido de socorro, o último piar que ficara preso. Outros passarinhos pousavam por ali, a ciscar e cantar. Alguns cantavam bonito, outros nem tanto, mas todos eles pareciam ignorar o corpo, o vôo não acontecido, o piar surdo. Só pareciam. A verdade é que eu não entendo o idioma dos pássaros mas, se eu pudesse, teria ouvido o seguinte:

- "Questos bastardi assassinaro" un altro dei nostri!
- Per la giustizia, dobbiamo andare al boss...

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Partida

Que horas tão boas são estas últimas antes da partida. Horas que antecedem o fim da tarde que vai vagarosa de encontro com a noite a despertar. Ah, já sou todo saudade antes da despedida da bonita Curitiba que me dá mesmo essa sensação de estar sempre debaixo de olhos queridos e cuidadosos. Volto à rotina com o coração leve, como que aproveitado cada segundo da paz oferecida, como que um plano cumprido. Precisava sobretudo transparecer, aliviar o fardo, pensar e dizer. Ao redor dos pensamentos, lembranças flutuavam irretocáveis de um passado recente que ainda fazem latejar este doloroso coração. Ah, se Curitiba fosse uma praça na esquina de casa de onde pudesse, só de olhá-la pela janela, visitar todas aquelas sensações que reviveram meu coração! Que fosse um daqueles quadros que a gente não consegue entender como, em tão pouco espaço, há tanta beleza. Mas Curitiba não é nada disso porque ela respira e vive. Se Curitiba pudesse ser, seria uma garota de olhos pequeninos que com seu sorriso fácil faria brotar tantos outros sorrisos fáceis e, com seus cabelos vermelhos, marcariam como fogo a memória de quem cruzasse seu caminho. Não seria esguia, nem pequena demais, a maçãzinha de Truffaut: do tamanho ideal de um abraço apertado e graciosa, como só quem é inocente de sua própria graciosidade poderia ser. Que se protege nos primeiros olhares, distante e fria, mas quando vencida a desconfiança, aqueceria por dois numa manhã fria de inverno. Como a beleza de Curitiba está em qualquer lugar que se vá, a garota seria bela em todas as ocasiões e em todos os vestidos (até os breguinhas), dirigindo insegura ou se desculpando por isso, despertando ou dormindo, conversando ou só observando, rindo ou chorando (e ela teria esse impulso feminino à flor da pele), ficando ou indo. É preciso ter cuidado após visitar Curitiba, porque, depois dela, todas as outras cidades poderão ser menos, só lugares-comuns.
Se Curitiba pudesse ser, seria uma garota inesquecível para garotos esquecíveis como eu.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Máquina de Escrever

No mês que se finda, decidi tirar a máquina de escrever do armário para escrever cartas. Foi uma forma de me fazer escrever alguma coisa para pessoas que estão fora do meu alcance, seja espacial ou temporalmente (pessoas que não falo há tempos). Além do que, carta, para mim, tem um sentido todo especial, independente de quem seja o destinatário. É preciso empregar um tempo razoável para a tarefa. Mais do que isso, pensar a respeito. Pensar porque, com a máquina, não se pode voltar atrás na palavra escrita. É preciso estruturar o parágrafo inteiro antes de colocá-lo no papel e acredite, não é fácil (como exercício, propus sequer revisar as cartas). Acostumado com o computador onde é possível editar e reestruturar o texto, lidar com algo tão "rústico" me trouxe uma sensação há muito não experimentada de que escrever é um trabalho artesanal. É um trabalho manual, de atenção, de carinho com a próxima palavra, de assistir de perto uma gênese. Nesse sentido, é como se o computador fosse uma ferramenta artificial de criação onde não é possível observar a transformação do movimento mecânico da máquina numa idéia. Perde-se o vínculo entre a construção e os sentidos que é, de certo, fundamental para o aprimoramento do artesão. Da ponta dos dedos nas teclas pesadas aos ombros curvados e olhos atentos, o andar do rolo, a audição dos ruídos característicos, entre outras especialidades que fazem do processo algo sensível, vivo, quase tátil. E não é justamente isso o que se pretende, ao meu ver, propiciar ao leitor?